Movimento: Qongqothwane

Soprano sul-africana Pumeza Matshikiza exibe técnica robusta na Sala Cecília Meireles.

Em uma temporada em que a ópera foi jogada para segundo plano em esfera nacional, com dois dos principais teatros líricos brasileiros – o Municipal do Rio de Janeiro e o Municipal de São Paulo – atuando muito mais na base do improviso e, por isso mesmo, abrindo mão de projetos artísticos mais bem delineados, a série Lírica da Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, está sendo responsável por alguns dos melhores momentos da arte do canto no Brasil em 2017.

Esta série, que já contou anteriormente com recitais de cantores brasileiros de relevância internacional, como Atalla Ayan, Paulo Szot e Fernando Portari, ofereceu, no dia  1º de novembro, em parceria com o Festival Ópera na Tela, seu primeiro recital de uma cantora estrangeira: a soprano sul-africana Pumeza Matshikiza, acompanhada pela pianista Priscila Bomfim, que, por sua vez, já atuara nos recitais de Ayan e Portari.

Eu havia escutado Matshikiza, com amplificação, no dia 27 de outubro, durante a abertura oficial do Festival Ópera na Tela deste ano, no Parque Lage. E ali, mesmo amplificada, a voz firme da artista já me chamara a atenção, despertando ainda mais minha curiosidade para sua apresentação na Sala em 1° de novembro. Meus ouvidos não me enganaram: sua voz tem um timbre belo e ligeiramente escuro, bom volume e excelente projeção. Sua técnica é robusta e bem cuidada, com emissão sempre homogênea em todas as regiões.

A soprano abriu a noite com quatro canções de Gabriel Fauré, dentre as quais se destacaram as duas últimas: Automne, Op. 18, n. 3, interpretada com intensidade; e Toujours, Op. 21, n. 2, em que a cantora pôde demonstrar pela primeira vez sua grande expressividade.

Em seguida, ouvimos mais quatro canções, agora do ciclo Venezia, do compositor venezuelano, naturalizado francês, Reynaldo Hahn: Sopra l’acqua indormenzata, cantada com doçura; La barcheta, abordada com extrema delicadeza; L’avertimento, em que pudemos notar o bom nível técnico da soprano; e La biondina in gondoleta, esta abordada com sutileza e requintes de expressão. (Nota do autor: os títulos das canções são influenciados pelo dialeto veneziano, daí o uso de “indormenzata”, em vez do italiano “addormentata”; e ainda “avertimento” e “gondoleta”, em vez de “avvertimento” e “gondoletta”).

Uma sequência de sete canções de Fernando Obradors concluiu a primeira parte. Difícil aqui destacar uma ou outra peça na interpretação da soprano, que passeou por elas com sua técnica apurada. Vale destacar os requisitos expressivos também para o piano, encarados com grande musicalidade por Priscila Bomfim.

Depois do intervalo, Pumeza Matshikiza dedicou-se à ópera, começando pela Canção da Lua (Měsíčku no nebi hlubokém), do primeiro ato da ópera Rusalka, de Antonín Dvořák. Aqui, porém, e ainda que a qualidade vocal tenha se mantido firme, faltou um pouco de expressão. Em seguida, de La Bohème, de Puccini, a artista ofereceu a ária de Mimì no terceiro ato, Donde lieta uscì. E agora, sim, cantando uma parte que já integra há algum tempo o seu repertório, pudemos ouvir uma belíssima interpretação, com voz generosa e encorpada, e com a não menos necessária expressão.

A artista encerrou o programa oficial com mais duas árias: Oh, la pitoyable aventure, da ópera em ato único L’heure Espagnole, de Ravel, cantada com apuro técnico; e Ebben?… Ne andrò lontana, do primeiro ato de La Wally, de Alfredo Catalani, na qual mais uma vez a soprano demonstrou toda a sua generosidade vocal, valorizando a célebre melodia principal, com um legato refinado.

Priscila Bomfim, que tem se destacado como a pianista da ópera no Rio de Janeiro (além de atuar também como regente e como preparadora da Academia de Ópera Bidu Sayão), também teve seu momento de brilho. Além de acompanhar muito bem a soprano durante todo o recital, a musicista teve uma peça só para si exatamente na metade das quatro árias da segunda parte do programa, quando interpretou a Pavane pour um infante défunte, de Ravel. Com delicadeza e musicalidade, Bomfim expressou os diferentes matizes da obra do compositor francês.

Encerrado o programa, Pumeza Matshikiza, ofereceu dois bis. O primeiro deles foi uma canção tradicional sul-africana, de autor desconhecido, e aqui apresentada em arranjo do pianista Iain Farrington: Qongqothwane (mais conhecida como The Click Song), cantada na língua xhosa (uma das onze línguas oficiais da África do Sul) e que inclui vários “cliques”, ou seja, sons produzidos com a língua ou com os lábios, sem a ajuda dos pulmões. De letra curta, mas ritmo contagiante, a canção recebeu da soprano uma interpretação deliciosa, com as cores de sua terra natal. No segundo bis, que fechou de vez a noite, a artista recorreu uma vez mais a Reynaldo Hahn, interpretando lindamente uma de suas mais belas canções, À Chloris.

Como ocorrera nos demais recitais da série Lírica da Sala Cecília Meireles, foi não apenas uma excelente noite de música, mas também uma bela aula de canto, proferida por esta joia proveniente do sul da África. Pena que, desta vez, notei tão poucos cantores na plateia.

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